Medo do medo
"Querendo ser politicamente corretos, estamos cometendo
um triste engano, deformando histórias e até cantigas
que fazem parte do nosso imaginário mais básico"
Tenho observado alguns esforços  psicopedagógicos no sentido de tornar nossas crianças politicamente  corretas - postura que muitas vezes nos transforma em seres tediosos,  sem graça nem fervor. Contos de fadas, por exemplo, alimento da minha  alma de criança, raiz de quase toda a minha obra adulta, sobretudo  romances e contos, foram originalmente - dizem estudiosos -narrativas  populares, orais, de povos muito antigos. Assim eles representavam e  tentavam controlar seus medos e dúvidas, carentes das quase excessivas  informações científicas de que hoje dispomos. Nascimento e morte, sexo,  sol e lua, raios e trovões, o brotar das colheitas lhes pareciam  misteriosos, portanto fascinantes. 
Muito mais recentemente, escritores  como Andersen e os irmãos Grimm adaptaram tais relatos ao mundo infantil  e criaram suas maravilhosas histórias, que unem, como a vida real, o  belo e o sinistro. Uma sereia quer pernas para namorar seu príncipe na  praia, mas o sacrifício é terrível, a cada passo de suas novas pernas,  dores inimagináveis a dilaceram. Uma princesa, sua família, séquito e  criados do castelo dormem um sono profundo, maldição de uma fada má, e  só serão libertados pelo príncipe salvador - que, é claro, sempre  aparece. Branca de Neve, Rapunzel e dezenas de outros personagens  alimentaram nossa fantasia e continuam a alimentar a das crianças que  têm sorte, cujos pais e escolas lhes proporcionam contato cotidiano com  esses livros. 
Porém, faz algum tempo, há um  movimento para reformular tais relatos, tirando-lhes sua essência, isto  é, o misterioso e até o assustador. Lobos seriam bobalhões e vovozinhas  umas pândegas, só existiriam fadas boas, e as bruxas, ah, essas passam a  ser velhotas azaradas. Até cantigas de roda seculares tendem a ser  distorcidas, pois atirar um pau num gato é uma crueldade, como se fosse  preciso explicar isso para as crianças saberem que animais a gente ama e  cuida - se é assim que se faz em casa. 
Vejo em tudo isso um engano e um  atraso. Impedindo nossas crianças do natural contato com essas  antiquíssimas histórias, que retratam as possibilidades boas e negativas  do mundo, nós as deixamos despreparadas para a vida, cujos perigos  entram hoje em seus quartos, rondam escolas e clubes, esperam na esquina  com um revólver na mão de um drogado, ou de um psicopata lúcido e frio,  sem falar nos insidiosos pedófilos na internet. 
Estamos emburrecendo nossas crianças e  jovens, mesmo querendo seu bem? E, afinal, o que será o seu bem?  Ignorar o que existe de sombrio e mau, caminhar feito João e Maria  alegrinhos, não abandonados pelos pais, mas procurando borboletas no  mato? Receio que a gente esteja cometendo um triste engano, deformando  histórias e até cantigas que fazem parte do nosso imaginário mais básico  com arquétipos humanos essenciais. 
Em compensação, adolescentes e  crianças procuram o encanto do misterioso lendo sobre vampiros, bruxos e  avatares, vendo seus filmes e pesquisando na internet. Por que isso? -  me perguntou recentemente um pai. Porque, neste momento de altíssima  tecnologia, a alma humana busca a expectativa, o segredo e o susto.  Precisa conhecer o mal para se acautelar e se proteger, o belo e o bom  para crescer com esperança. Mas nós, pedagogos e pais, nem sempre  seguros e informados, começamos a querer alisar excessivamente a estrada  para eles, não lhes ensinando que o mal existe, assim como o bem, que o  belo nos atrai, assim como o monstruoso, e que é preciso desenvolver  discernimento (gosto dessa palavra), isto é, a capacidade de entender e  distinguir o melhor do pior, a fim de fazer com mais clareza e segurança  as inevitáveis escolhas. 
Mas se, porque isso nos tranquiliza,  tratamos as crianças como imbecis, e queremos nosso adolescente  infantilizado por um longo tempo, exigindo-o cada vez menos em casa, na  escola e nas universidades - embora deixando que se sexualize de forma  precoce e criminosa -, vai ser difícil que tenham informação, capacidade  de julgar e escolher, que seriam nosso maior e melhor legado para elas.   
Lya Luft é escritora
 
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