Ética e moral são assuntos de criança? O psicólogo Yves de La Taille fala sobre o que os adultos podem fazer para ajudá-las
Político é tudo ladrão! Com tanta violência, quem tem vontade de sair de casa e encontrar as pessoas? Hoje em dia, não dá mais para confiar em ninguém! Este mundo está perdido! Difícil encontrar alguém que não faça esse tipo de reflexão vez ou outra. Está nos noticiários, está nas esquinas: parece que vivemos em uma sociedade sem regras, na qual o que vale é cada um por si e ninguém por todos. E quando, ao seu lado, existem pequenos seres que só estão começando sua relação com o planeta e seus habitantes? Para o psicólogo francês Yves de La Taille, estudioso do desenvolvimento da moral e professor da Universidade de São Paulo, a sensação de caos é legítima. Vivemos uma crise de ética e moral e estamos questionando nossos princípios. Falta-nos um sentido para a vida. "Para entender o processo que leva uma pessoa a respeitar determinados princípios e regras morais, é preciso conhecer seu projeto de vida", afirma. Morando no Brasil desde criança, casado com uma brasileira e pai de dois filhos, de 8 e 11 anos, Yves publicou recentemente um livro em parceria com o filósofo Mário Sérgio Cortella, professor da PUC-SP, chamado Nos Labirintos da Moral (Editora Papirus). Nele, os dois pensadores discutem como essas questões filosóficas abalam a sociedade de hoje e qual é o papel de pais e de professores. Nesta entrevista, Yves fala sobre isso tudo e faz um alerta: os pais estão se perdendo com essa preocupação exagerada de preparar os filhos para o mercado de trabalho. Ele pergunta: "O que é um ser competitivo? Uma pessoa com saberes, claro. Mas, sobretudo, uma pessoa apaixonada pelo que faz". E propõe: "Se a gente não sabe como vai ser o mundo, vamos pelo menos pensar sobre ele". Que tal começar por aqui?
Está mais difícil ensinar ética e moral para as crianças?
Sim. E por várias razões. Uma delas é a complexidade das relações sociais no mundo globalizado. É diferente de antigamente, quando as pessoas moravam na mesma cidade e trabalhavam na mesma empresa a vida inteira. Hoje você encontra vários tipos de pessoas e, inevitavelmente, vários tipos de valores, de regras morais e de princípios. Por um lado, pais e professores nunca estiveram tão informados sobre o que é uma criança. Por outro, estão perdidos no que diz respeito a valores, regras e comportamento. Não se trata, então, de um problema técnico, de não saber como fazer, e sim de não saber aonde ir. Mas não é só isso. Acho que a sociedade ocidental – não falo das outras – está em dúvida sobre os próprios valores. Na Europa, nos Estados Unidos, na América Latina e no Canadá, em todas as classes sociais, mas principalmente na classe média, que usufrui mais diretamente do capitalismo e do mercado, existe uma dúvida a respeito do certo e do errado. As décadas de 60 e 70 jogaram fora uma série de valores, que a meu ver tinham mesmo de ter sido jogados, porém não houve o mesmo trabalho de colocar outros no lugar.
Você diz que ética é "o que eu quero ser na vida". Na educação com as crianças, seria, então, "o que eu vou passar a elas"? O mundo de hoje se aproxima muito da ideologia da lei do mais forte. Há a idéia de que quem não se preparar estará perdido – o cada um por si. Você não tem ajuda do Estado, um traço da cultura atual ocidental. As pessoas não têm muito mais tempo para pensar em nada, além da sobrevida, no que vão fazer ou deixar de fazer. E, na ideologia do cada um por si e ninguém por todos, a moral e a ética ficam onde?
Isso influencia as relações sociais? A moral ou a ética surgem a partir da minha relação com o outro. E que outro é esse? Ele pode participar da minha vida ou não ter lugar algum nela. Realizei uma pesquisa com adolescentes e pedi que eles escrevessem sobre o que desejariam ser no futuro, focalizando a questão do projeto de vida. O resultado foi que em um terço dos textos havia referência ao outro, mas em dois terços, não. Ou seja, mostrou que muitos jovens se entendem socialmente isolados, onde o outro não comparece, ou, se comparece, é de forma instrumental. Por exemplo: "Quero uma mulher bonita e rica", sempre com o tom de estar usufruindo do outro como se fosse um carro. Se o outro não está presente na sua vida, se o outro não é visto porque não é importante, temos um problema moral e ético. A grosso modo, o que aconteceu foi o seguinte: o sistema capitalista começou mais forte no século 18. Do século 19 até parte do 20, o que garantiu a moral foi a religião. Os negócios vão e a religião segura. Hoje a religião tem muito menos força do que antes. Um dos movimentos políticos que de fato falavam de liberdade, igualdade e justiça era o de esquerda. E cá entre nós, não sobrou nada dessa esquerda. O capitalismo não é moral nem imoral. Na lógica do capitalismo, o outro é ou o freguês ou o operário, o outro não é um parceiro.
Não há como fazer diferente? É difícil dizer isso... Foi feita uma pesquisa (financiada pelo Instituto da Editora SM e em parceria com a professora Elizabeth Harkot de La Taille) com jovens de ensino médio em São Paulo sobre o que era mais importante na sociedade com as alternativas religião, política, artes, ciência e moral. Das cinco ganhou, de longe, moral e a religião ficou por último. Valores antigos não voltam, foram feitos para determinados momentos... Agora se você me pergunta "a sociedade vai bem desse jeito?". Não, não vai bem. A rigor cada um se vê sozinho, as relações são vistas como violentas, desconfiadas. Você não confia no outro e sabe que o Estado é fraco. Não é uma boa situação e tenho pena, de certa forma, da juventude de hoje, porque tem acesso (sobretudo na classe média) estupendo à cultura, pela Internet, etc., mas vive o problema do tédio. E é por isso que se "droga" com tantas atividades. A sociedade não está bem.
Pense em uma família. Quando estão em casa, um vai para o computador, outro para o telefone e outro para a televisão. Se não há convivência, como passar o certo e o errado, como ensinar moral e ética?
A vida hoje é organizada de tal forma que o meu comportamento não depende do outro. Nesse caso, uma moral e uma ética são até inúteis. O que fazer então? Coordenar ações. Não é preciso que todo mundo faça todas as atividades juntos. Mas vale dizer: "Bem, então você pode ir para o computador, mas até as 7, o.k.?" E, às sete, você propõe "vamos jantar?", "vamos ouvir música?". A moral serve justamente para regular esse tipo de relação social. O trabalho dos pais é tratar do tema com seus filhos. Isso não significa ficar no ouvido deles: "Olha, o mundo não presta, se prepare, é difícil, cuidado..."
É muito peso para eles?
Peso demais. Deixam ver qualquer coisa na televisão! Dou um exemplo pessoal. Meus filhos tinham 5 e 7 anos na época do atentado de 11 de Setembro. Eram cenas passando o dia todo e a minha postura foi de não deixar ver as imagens. Mudei mesmo de canal. Qual a razão? Aliená-los da realidade? Não. Fiz isso simplesmente porque para eles não faria sentido. Sobretudo com cenas chocantes, que eles não conseguiriam elaborar, entender, e que poderiam causar o que causou a um monte de gente: medo de elevador, de avião, etc.
Mas não é preciso haver uma medida? Falar sobre a violência do mundo de hoje aprisiona a criança?
Não dá vontade de crescer.
Tem relação com o fato de os adultos também não quererem envelhecer? Sim! Estamos na sociedade do divertimento. E cada vez mais me dá a impressão de que o lazer é ocupado por coisas que são puro divertimento, que não vão além. Anos atrás havia discos conceituais, para você pensar, como Construção, do Chico Buarque. Hoje a sociedade apenas passa o tempo.
Sem refletir?
Sem refletir porque falta material para isso. E quem mais tem força para influenciar é a escola. Nas matérias, por exemplo, de História e Literatura, há muita oportunidade para discutir. Se a gente não sabe como vai ser o mundo, vamos pelo menos pensar sobre ele. Dependendo da formação dos pais, a família tem mais ou menos material, mais ou menos livros e discos, por exemplo, mas a escola deveria ter sempre – e é aí que ela falha. Um conselho que eu poderia dar aos pais é: escolham escolas que valorizem a cultura, o fazer pensar. Que não sejam apenas preparadoras para o mercado de trabalho.
Por quê?
Porque você pode até formar um profissional competente, mas triste. Do ponto de vista social, o que é pior: um matemático competente sem moral ou um matemático menos competente, mas honesto e honrado? Quem você prefere encontrar? Um bom matemático cruel ou um matemático razoável e generoso? Fazer pensar é um grande diferencial nessa sociedade. Existe uma preocupação legítima dos pais, desde sempre: que os filhos se dêem bem na vida. Ótimo. Todas as gerações foram assim. Só que está mais difícil brigar por essa vida boa por causa do desemprego. Na minha época, meu pai me dizia: "Olha, você provavelmente terá uma vida melhor que a minha e para isso você precisa estudar. Estude, terá uma vida mais tranqüila, melhor que a do teu pai, que teve a guerra, etc.". Hoje a preocupação é a mesma, só que a dificuldade é outra. O problema era ser pobre ou ser rico, mas não estar excluído. E hoje os meninos pensam "será que eu vou ter um emprego?". Tudo isso para chegar aqui: vocês querem filhos que se dêem bem e sabem que eles têm de ser mais competitivos. O que é, então, um ser competitivo? Uma pessoa, claro, com saberes. Mas, sobretudo, uma pessoa apaixonada pelo que faz. Não adianta encher o filho de atividades, se elas são um fardo, encaradas como algo que não faz sentido. A paixão por alguma coisa tem de ser desenvolvida. E o discurso "cuidado, você pode se dar mal" paralisa a paixão de imediato. A criança cresce pensando "bom, eu não tenho tempo para procurar algo para me apaixonar, portanto, tenho de me apaixonar por uma mulher rica, um homem rico!". E isso não é paixão, é o uso instrumental de algo. Eu diria "não mate, e sim alimente a paixão de seus filhos". O papel dos pais é dar a base. Colocar para aprender a nadar e falar inglês. O resto é com eles. Abrir o leque, mas sem achar que a paixão será imediata.
E está faltando paixão também na sala de aula? Os professores que gostam não apenas de dar aula, mas da matéria que ensinam, em geral têm melhores resultados, suas classes mais pacíficas do que a de seus colegas e recebem mais respeito por parte dos alunos. Isso porque eles têm admiração mesmo dos alunos que não gostam daquela matéria. Os olhos deles brilham. Aí a criança ou o jovem passa a respeitar, se interessar e até quem sabe se inspirar nele.
É preciso ter paciência para educar?
Sim. Sem atalhos e subir degrau por degrau. Quem sobe muito rápido cai na mesma velocidade. Quem tem talento não desce. É preciso ter calma. É a família que vai dizer: "Você pode sentir raiva, mas não pode bater". Sintam raiva à vontade, mas não batam. Tem de explicitar. E tem de repetir, ver se ela entendeu, mostrar várias vezes.
Então é calma e paixão?
Dá até nome de filme! É preciso ter calma para enxergar a paixão. Há pais que dizem "minha filha tem 12 anos e não gosta ainda de nada". Não se preocupem, porque só Mozart sabia o que queria com essa idade! Tenham muita calma que a paixão vem depois.